Por onde andei
Keller Regina
Viotto Duarte
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
São Paulo –
Brasil
Resumo
Por onde andei, nomeia um processo criativo atual que reúne minhas próprias
experiências de quarenta anos de vida representadas a partir de objetos,
fotografias e imagens digitalizadas. O que foi guardado pede nesse momento que
seja revelado.
Objetos, documentações e representações contam uma história de vida permeada pela
vivência artística, seja na condição de leitora ou de produtora em arte.
Ver, observar e apreciar arte assim como
reproduzir, colecionar, fazer arte fez parte da minha história de vida, e é
esse conjunto de objetos e imagens reunidos, selecionados, relacionados e
apresentados na condição da produção artística contemporânea que compõem
esse projeto.
Considerando as ideias e pensamentos dos autores
Charlote Cotton , Henri Bergson, Isabelle Rouge, Lúcia Santaella e Marcos
Rizolli dentre tantos outros que orientam este processo criativo, proponho
neste artigo a revelação do modo de produção artística auto-referente atual.
Este projeto é parte integrante e parcial da
pesquisa doutoral que está sendo desenvolvida durante o meu percurso no
Programa de Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura, da
Universidade Presbiteriana Mackenzie. “- Este trabalho foi
financiado em parte pelo Fundo Mackenzie de Pesquisa.”
A arte contemporânea alarga o campo artístico e
esta pesquisa está inscrita neste campo, o qual aceita a convivência e a
mistura de linguagens, ou melhor, linguagens híbridas, assim como de materiais,
técnicas e procedimentos artísticos assim como de uma nova linguagem no caso da
hipermídia e as possibilidades de web arte.
Nesse cenário, a fotografia ocupa um lugar privilegiado como arte.
A arte contemporânea acolhe também a vida cotidiana
do artista como argumento referencial ou o que Isabelle Rouge chama de museus
imaginários ou pessoais.
Os artistas Andy Warhol, Joseph Beuys, Cindy
Sherman, Marina Abramovic e Sophie Calle exemplificam e iluminam essa pesquisa.
Palavras-chave: fotografia, imagens digitalizadas, história de vida, produção
auto-referente, arte contemporânea.
1. Por onde
andei, nomeia um processo criativo atual que reúne minhas próprias
experiências de quarenta anos de vida representadas a partir de objetos,
fotografias e imagens digitalizadas. Nesse processo, reconheço e identifico
como experiência, aquelas que de acordo com John Dewey podem ser identificadas como uma experiência singular:
Quando o material vivenciado faz o percurso até sua consecução. Então, e
só então, ela é integrada e demarcada no fluxo geral da experiência proveniente
de outras experiências. Conclui-se uma obra de modo satisfatório; um problema
recebe uma solução; um jogo é praticado até o fim; uma situação, seja a de
fazer uma refeição, jogar uma partida de xadrez, conduzir uma conversa,
escrever um livro ou participar de uma campanha política, conclui-se de tal
modo que seu encerramento é uma consumação, e não uma cessação. Essa
experiência é um todo e carrega em si seu caráter individualizador e sua
autossuficiência. Trata-se de uma
experiência (Dewey, 2010, p.109 - 110).
Para Dewey, a experiência singular tem uma unidade e
por isso é nomeada. Nesse caso, nomeio algumas experiências singulares
percebidas no transcorrer da minha vida.
Segundo o autor a existência dessa unidade é
constituída por uma qualidade ímpar que perpassa a experiência inteira, a
despeito da variação das partes que a compõem (Dewey, 2010, 112).
Imagem 1. Diamantina: uma experiência singular
A imagem 1. Diamantina: uma experiência singular, uma
fotografia digital, assim nomeada e apresentada, representa um conjunto de fotografias,
impressos, álbum de fotos, uma pasta portfólio, ou seja vestígios de uma
experiência vivida por mim e ora guardada ora mostrada.
Essa imagem contempla uma metalinguagem, quando é
uma foto de outras fotos, no entanto, a pasta portfólio, o álbum, assim como a
disposição das imagem que se apresentam como acúmulo, sobreposições,
justaposições, intervalos, tonalidades quentes, outras frias, linhas diagonais
que estruturam provocam uma dinâmica, um movimento na composição; todos esses
elementos percebidos na imagem, revelam um momento novo de quem olha para
aquele conjunto de imagens como que recortando um fragmento da memória,
juntando peças e relacionando, reconstruindo e recontando com alguns vestígios uma
experiência vivida e registrada em diferentes
suportes, papéis, lona, álbum de fotos, caderno de registro,...
Essa experiência me remete a uma
experiência única, vivenciada por mim na cidade de Diamantina, Minas Gerais,
durante o mês de julho de 2001, quando participei da oficina de Criação
Bidimensional – Desenho/pintura, do Festival de Inverno da Universidade Federal
de Minas Gerais.
A decisão de querer participar do festival, a
inscrição, o resultado da seleção, os materiais levados na viagem (papéis,
tecidos tintas, pincéis,...), a viagem de Jundiaí até Belo Horizonte e depois
de Belo Horizonte até Diamantina, a hospedagem no alojamento da escola, o
café da manhã com pão de queijo
quentinho, as aulas, ou encontros, a professora da oficina de desenho, Isaura
Penna, a turma, as outras oficinas, tudo o que acontecia naquele período e
lugar, a minha produção exploratória, intensa, imersiva, os momentos de
suspensão e retorno ao processo, tudo o que ficou compreendido naquele período
e o que dele decorreu, marcou profundamente minha trajetória de vida.
Foto 2. Título: “Caminho dos escravos – Diamantina”
Artista: Keller Duarte
Desse processo todo, algumas obras produzidas lá,
se destacaram e passaram a ser expostas em diferentes ocasiões como foi o caso
do desenho em cêra sobre lona, de 300 x 160 cm, produzido com a técnica da frotagem,
diretamente no “caminho dos escravos”, uma trilha de pedras, hoje um trajeto
até mesmo turístico na cidade, mas que guarda nas pedras a memória de muitas
histórias de andantes que por ali passaram.
O que foi guardado pede nesse momento que seja
revelado.
Objetos, documentações e representações contam uma história de vida permeada pela
vivência artística, seja na condição de leitora ou de produtora em arte.
Ver, observar e apreciar arte assim como
reproduzir, colecionar, fazer arte fez parte da minha história de vida, e é
esse conjunto de objetos e imagens reunidos, selecionados, relacionados e
apresentados na condição da produção artística contemporânea que compõem
esse projeto. É o
tempo, com sua densidade, que dá sentido às vivencias. Hoje, onze anos após essa experiência ter sido
vivenciada e selecionada nesse novo processo criativo, que reconheço e
identifico esta experiência, Diamantina: julho de 2001, como uma experiência
singular, artística e estética.
E Katia Canton diz que:
Nas
artes, a evocação das memórias pessoais implica a construção de um lugar de
resiliência, de demarcações de individualidades e impressões que se contrapõem
a um panorama de comunicação e de tecnologia virtual que tendem gradualmente a
anular as noções de privacidade, ao mesmo tempo que dificultam trocas reais
(2009, p.22).
Charlotte Cotton afirma que a fotografia se tornou central no cenário da
arte contemporânea (2010, p.21).
A arte conceitual minimizou a importância da autoria e da competência
prática, aproveitando a capacidade inabalável e cotidiana da fotografia de
retratar as coisas: adotou um visual peculiarmente “não artístico”,
“inexperiente” e “anônimo” para enfatizar que a importância artística residia
no ato retratado pela fotografia (Cotton, 2010, p. 21).
Canton cita Peter Pál Pelbart, quando escreve no
texto “tempos agonísticos”, sobre o regime temporal que preside nosso cotidiano
que, segundo o filósofo, sofreu uma mutação tão desorientadora nas últimas
décadas que alterou inteiramente nossa relação com o passado, nossa ideia de
futuro, nossa experiência do presente, nossa vivência do instante, nossa
fantasia de eternidade” (Canton apud
Pelbart, 2009, 19).
E é por essa percepção do tempo contemporâneo que a
autora afirma que ele retira as
espessuras das experiências que vivemos no mundo, afetando inexoravelmente
nossas noções de história, de memória, de pertencimento (Canton, 2009, p.20).
É na contramão dessa sensação de atemporalidade, de
que apenas o agora existe, que proponho esse projeto de investigação, marcado
por um processo de deslocamentos no tempo e no espaço. Por onde andei, revela a espessura das experiências vividas e
recuperadas na memória pelos vestígios deixados, sejam eles as fotografias,
objetos, documentos, cada qual com sua característica própria de um tempo e lugar
específico.
A apropriação e a releitura que a fotografia artística contemporânea faz
das imagens também são realizadas pelo cotejo de fotos existentes, normalmente
vernáculas e anônimas, a composição de grades, esquemas e justaposições. Em
certa medida, o papel do artista, nesse caso, é como de um editor de gravuras
ou de um curador, configurando o significado das fotos por meio de atos de
interpretação e não pela realização de imagens (Cotton, 2010, 208).
Recuperar, organizar, ressignificar fotos existentes é atualmente um
segmento da fotografia artística contemporânea.
Esse registro da experiência singular, da memória, do que ficou guardado
é o que dá a espessura e densidade que passa agora a ser celebrada.
Celebra-se com a mostra, a exposição, a revelação, a divulgação seja em
ambiente físico real ou hipermidiático como ocorre com a publicação das imagens
atualmente em blogs e redes sociais.
O blog Atelier Keller Duarte foi inaugurado no dia 06 de março de 2012.
Derivado do termo francês Atelier,
este ambiente digital e público, pretende guardar e revelar parte do meu
processo criativo do entorno da minha pesquisa doutoral. Por onde andei, é mais um processo que ocupa esse lugar. Um ambiente
hipermidiático, que requer a linguagem hipermidiática. Linguagens híbridas,
sempre digitais.
Lucia Santaella cita Feldman para apresentar a hipermídia como sendo “a
integração sem suturas de dados, texto, imagens de todas as espécies e sons
dentro de um único ambiente de informação digital” (2005, p.392).
É nesse ambiente que guardo e revelo, a partir de então, esse meu museu
imaginário.
A arte contemporânea acolhe também a vida cotidiana do artista como argumento
referencial ou o que Isabelle Rouge chama de museus imaginários ou pessoais.,
ou ainda de narração auto-fictícia. A autora faz referencia a diversos artistas
que põem a sua própria vida no âmago da sua arte, dentre eles cita Christian
Boltanski, Sophie Calle, Jeff Koons e Gilbert e George.
A expressão, museu imaginário, usada primeiro por André Malraux, traz outra interpretação.
Malraux fala da incompletude do museu físico e a nossa possibilidade de
imaginá-lo completo. Ele fala de uma história da arte do que é fotografável (1965, p.108). Enquanto Rouge usa a expressão
do ponto de vista do artista do sujeito que faz arte, Malraux apresenta toda
uma reflexão do ponto de vista de quem lê ou aprecia arte. Sendo assim,
considero a relevância da obra André Malraux, mas é no contexto de Isabelle
Rouge que me aproprio do termo museu imaginário.
Alguns artistas selecionados aqui por mim, exemplificam e iluminam essa
pesquisa. São eles: Warhol, Beuys, Sherman, Abramovic e Calle. De cada um
deles, um fragmento, um exemplo, uma referência, numa busca constante por
encontrar a minha linhagem artística.
O artista Andy Warhol, deixou além do conjunto da sua obra, a memória do
seu atelier-estúdio-escritório, The Factory, como proposta de espaço do
artista. Marcos Rizolli o considera um experimentador por excelência,
um artista que sob qualquer pretexto buscava expor as imagens de sua cultura
imediata (2005, p.140).
Segundo Isabelle Rouge, aos olhos de Warhol, muitos objetos da vida
cotidiana são dignos de figurar no museu ao nível de um quadro ou esculturas
clássicos (2003, p.17)
Joseph Beuys, também considerado por Rizolli um artista experimental,
tem a ideia de arte como evento, um fluir ininterrupto de situações e de
emoções.
Cindy Sherman, artista norte-americana, uma das maiores representantes da
fotografia de arte pós-modernista, apresenta como temática constante, elementos
da vida cotidiana. O autorretrato nesse caso se apresenta interpretando vários
personagens. Ela é ao mesmo tempo a fotógrafa
e a modelo de suas criações.
É Marina Abramovic quem diz: [...] A minha grande
pergunta é: será que o artista tem o direito de atualizar o material de seu
passado, colocando-o em um contexto no qual talvez venha a ter uma nova vida?”
(28 Bienal de São Paulo Guia, 2008)
Assim como ela, que
usa imagens dela mesma, de outros tempos, edita e atualiza as imagens, o que eu
faço é reunir, selecionar, montar, justapor, sobrepor, digitalizar, editar e
publicar essas imagens em ambiente digital e no caso do blog, em rede.
Sophie Calle é mais uma artista que, segundo Isabelle Rouge, põem a sua
própria vida no âmago da sua arte. Seu
trabalho aparece como uma autobiografia, às vezes fictícia, mas visual
(2003,p.30).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Bergson, Henri.
Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Traduç.
Paulo Neves. 4ª ed. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2010.
Cauquelin, Anne.
Arte contemporânea: uma introdução. Tradutora Rejane Janowitzer. São Paulo:
Martins, 2005.
Cotton, Charlotte. A fotografia como arte
contemporânea. Trad. Maria S. Mourão Netto. São Paulo, Editora WMF Martins
Fontes, 2010.
Dewey, John. A arte como experiência. Traduç. Vera
ribeiro. São Paulo, Martins Martins Fontes, 2010.
González Flores, Laura. Fotografia e pintura: dois
meios diferentes? Traduç. Silvana Cabucci Leite. São Paulo, editora WMF Martins
Fontes, 2011.
Canton, Katia.
Tempo e Memória. (Coleção temas da arte contemporânea). São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009.
Larrosa, Jorge.
Nota sobre a experiência e o saber da experiência. Texto subsídios ao trabalho
pedagógico das unidades da Rede Municipal de Educação de Campinas. 2001.
Malraux, André. O
museu imaginário. Traduç. Isabel Saint-Aubyn. Portugal, Edições 70, 1965.
RIizolli,
Marcos. Artista, cultura, linguagem. Akademika Editora, 2005. Campinas, SP.
2005.
Rouge, Isabelle
de Maison. A Arte Contemporânea. Ed. Inquérito, Portugal, 2003.
Santaella, Lucia; Noth, Winfried. Imagem:
cognição, semiótica e mídia. 1. Ed. São Paulo, Iluminuras, 2008.
Santaella,
Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora visual verbal: aplicações na
hipermídia. 3.ed. São Paulo Iluminuras: FAPESP, 2005.
Sontag, Susan.
Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo, Companhia das Letras,
2004.
Este projeto é parte integrante e parcial da
pesquisa doutoral que está sendo desenvolvida durante o meu percurso no
Programa de Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura, da
Universidade Presbiteriana Mackenzie. “- Este trabalho foi financiado em parte pelo Fundo Mackenzie de
Pesquisa.”